Segue,
nestas linhas, uma história qualquer.
Sobre
um dia qualquer.
Que
poderia ter acontecido comumente com todas as pessoas que leram, estão lendo ou
lerão este texto e, com uma freqüência muito maior, acontece com as que não
leram, não estão lendo e nunca o lerão.
Vida Morosa
Tinha,
por hábito, assim que acabava de despertar do sono matinal de forma compulsória,
açoitado pelo intermitente barulho polifônico do despertador, abrir a menor
fresta possível da cortina do quarto. Neste caso, esta pequena fenda era o
máximo para que obtivesse o mínimo de visão que o possibilitasse compreender de
que forma as condições climáticas se apresentavam naquele momento.
Nos
dias em que acordava antes do fim do ocaso ficava mais difícil, mas caso a lua
já tivesse trocado completamente de posição com o sol, era o hábito descrito
acima que determinava a sua inclinação ao bom humor no restante do dia: se o
mundo estivesse ensolarado, com céu azul e calor, levantava com uma enorme
disposição, sorrisos e esperava muito mais das horas que viriam a partir dali. Em
caso de nuvens concentradas, senhor do tempo grisalho, frio e garoa bem fina –
essa era a pior parte, afirmava: “Ou chove de vez ou não chove. Garoa fina é
falta de vergonha do ciclo da água” – transformava-se em um ser humano
desprezível e rabugento. Ele era o “Dr. Jekyll do clima”.
Entretanto,
naquela manhã, quem se pôs de pé foi o “Mr. Hide” e você, leitor, já pode
imaginar o motivo. A ameaça latente de chuva, dada a escuridão estabelecida,
mesmo com o dia nascido por inteiro, piorava toda a situação, já que Ele
detestava guarda-chuva. Mais que a chuva. Não havia jeito: casaco vestido por
cima da blusa social, calça jeans, tênis, meia e ele: o objeto que lhe despertava
repúdio. Fechado. Na mão. Com a pequena corda rodeando o pulso.
O
caminho da casa até o ponto onde tomava a condução com destino ao trabalho era
curioso e guardava uma beleza que contrariava a estética dominante para
apreciação de paisagens: a margem de um rio delimitava o seu caminho, cercado
por muitas árvores que também o acompanhavam por todo o trajeto. Naquele
horário, podia-se observar com facilidade aves de diferentes espécies, umas
voando e outras estáticas, além de peixes e frutos do mar em diversidade grande.
Entendo
que neste ponto você, se chegou até aqui, deve estar confuso e a pergunta em
sua cabeça é simples: como o autor afirma que o local não era digno de
apreciação estética se a idealização que ele me propõe descrita não acompanha
esta informação? Tudo bem, eu queria te privar da verdade, mas já que você
pediu e o que eu menos quero é que meu texto não seja compreendido, eu vou
direto ao ponto: não era rio, era vala, e um eufemismo que Ele gostava de usar
para se referir ao mesmo era: “ex-rio”, ou seja, foi um rio, mas deixou de
cumprir com a sua função. As aves que ali gorjeavam eram de duas espécies
apenas: garças e urubus, que aguardavam ansiosamente os restos jogados pelo
homem que vendia peixes, camarão e lula nas margens do valão. Acreditem: a
saída era grande.
Neste
cenário, caminhava Ele (ou Eu, ou Você). Cerca de 10 minutos o separavam da
chegada ao destino nem sempre pontual no ponto – de ônibus - e por volta do
minuto quatro e do segundo catorze, ele já podia, mesmo com a miopia, entender
uma forma borrada que se assemelhava à representação de uma ave parada. Uma
não, duas, nos dois postes que formavam uma espécie de portal. De um lado, a
ave branca. Do outro, a negra, mas essa informação da gradação não tem relação
com o final da história e só foi utilizada para que não se repetisse “urubu” e “garça”.
A
chuva se iniciou 42 segundos depois e, com muito mais nitidez dos animais no
topo da iluminação pública, Ele prontamente se valeu do guarda-chuva. Punho fechado
no cabo, polegar no botão de abertura, objeto na diagonal e pronto. Aquelas
inoportunas e malévolas moléculas de hidrogênio com oxigênio faziam de
propósito. A fome na África e o bombardeio de crianças palestinas por Israel,
com direito a camarote para assistir à barbárie – não há relação nesta frase
com o MMA –, a prisão preventiva de militantes políticos no Brasil e a
existência de Jair Bolsonaro, Silas Malafaia, Marco Feliciano e Luciano Huck não
se aproximavam do tamanho do problema que era aquela chuva, naquela hora, para
ele. Mesmo com a anunciação, mesmo sabendo que poderia acontecer. “Poderia ser
depois”, pensava.
Olhou
para o objeto em suas mãos e teve a certeza que continuava odiando carregar
aquele estorvo, aquele problema, mas havia uma coisa que ele gostava que só
aquilo ou uma capa poderiam lhe dar: a proteção. Estar submetido a ele era
extremamente ruim, mas pelo menos se protegia, se resguardava, da – agora tempestade
– que o acaso lhe proporcionou.
Conforme
caminhava, ia prestando atenção nas sentinelas com penas que observavam desde
muito longe o seu trajeto. Olhou para a beira do ex-rio e observou que o homem
do peixe não estava mais ali, bem como sua mercadoria. Observou também que, com
a chuva, garças e urubus haviam se entocado em algum lugar – talvez junto com o
peixeiro, não sabia – e apenas aquelas duas permaneciam ali. Paradas. Só os
olhos se mexiam, fazendo com que, num primeiro momento se compadecesse “dos
bichinhos que estavam todos molhados, coitados, nem possuem um abrigo como eu”.
Ele se concentrava nos olhares. O bichinho da
direita parecia lhe observar com uma severidade que o pior ser humano, que
passou por sua vida, nunca lhe havia lançado. Aflito, buscava o da esquerda e
recebia um olhar de pena. Como quem olha para uma criança faminta, para alguém
que perdeu um grande amor ou para quem acha tomorrowland
algo sensacional.
Desta
forma, Ele não sabia em qual deles concentrar sua atenção naquele momento. Foco
em sua frente. Escapou algumas vezes, mas apesar de todo assombro com a
humanidade penetrante naqueles globos oculares dos ovíparos, a sua curiosidade com
a cena o fazia buscá-los com impulso descontrolado e, agora, além de olharem
para Ele, passavam a trocar olhares entre si, como se estivessem se comunicando
e cochichando com a retina informações que só eles e apenas eles, bichos de
penas, poderiam saber, numa linguagem visual inalcançável.
Bem
próximo do portal desenhado, com a chuva castigando mais que em qualquer
momento do trajeto, baixou a cabeça e passou direto. Evitando a linha cruzada
na comunicação das aves. Evitando o assombro que aquela situação toda lhe
causava e negando – mesmo atribuindo a este pensamento algo vergonhoso – que sua
loucura estava ultrapassando os níveis limites da sanidade.
Pareceu
ouvir uma palavra. Procurou o peixeiro novamente e não o encontrou. Quando o
seu cérebro conseguiu processar o som que havia escutado no meio da ventania e
da tempestade com seus altos decibéis, não compreendeu. A Palavra foi “coitado”.
Seguida de uma voz diferente, que repetiu o mesmo termo, num tom que não
queria, mas não via como não concordar com a primeira.
Acelerou
o passo sem querer olhar pra trás, tendo a falsa impressão de que lutava contra
a realidade fantástica que se apresentava diante dEle. Na verdade, fugia. Ora,
não poderia ser apenas mais uma manhã comum em direção ao trabalho, somente
atormentada pela forte tempestade e salvaguardada pela segurança e proteção do objeto
que estava em suas mãos?
Entrou
no coletivo. Havia um lugar. Tomou o velho caderninho de anotações e rabiscou.
“Do
alto de suas torres,
Sentinelas
nus observam
O
transeunte que se protege
Das
amarguras
Que
amarguram os sentinelas.
Infeliz
do que se compadece
Do
desprotegido,
Pois
recebe, em resposta,
A
severidade e a pena
Que
o olhar da liberdade impõe.
Ser
livre é não se privar do acaso do mundo.”
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