22.11.12

Lenda Urbana



Há uma lenda urbana contada entre os jovens, geralmente nos locais em que ainda é possível estar até a madrugada na rua, que diz respeito ao horário em que a Morte se apresenta para levar as pessoas.  Não poderia ser mais emblemático e clichê, se levarmos em conta uma geração bombardeada por cultura pop: diz a história que, exatamente à 00:00h, ela aparece e leva aqueles que estão voltando para as suas casas.
O relato a seguir é sobre quando, neste horário específico, de alguma forma, houve a transfiguração da certeza de todos para Oscar.


Oscar aguardava o seu ônibus de volta para casa ansiosamente, no ponto daquela rua deserta e mal iluminada. No trecho em que estava, contava com dois postes e uma lâmpada em cada um, que ajudavam a diminuir o medo por estar ali, sabendo das probabilidades de ser abordado por um estranho que, provavelmente, não seria nada generoso em suas colocações. Entretanto, não havia jeito. Caminhar para outro lugar poderia ser arriscado demais. Além disso, contava com o agravante de ser sábado, um dia em que os meios de transporte, naquele horário, diminuem suas frotas e circulação. A melhor das opções era aguardar e contar com a ajuda do acaso para que o seu carro passasse rápido.
Colocou a mão por cima do bolso, titubeou em tirar o celular de dentro, para não chamar a atenção. Optou por olhar rapidamente, fazendo com que a luz da tela o possibilitasse enxergar, mesmo com o aparelho debaixo do tecido. Queria saber das horas. 23h58min mostrava o relógio digital. A apreensão tomava conta agora. De alguma forma, mesmo que ignorando de forma racional este dado, a meia-noite lhe causava um grande desconforto, principalmente por causa da quantidade de filmes que lhe vinham à mente. Pensou que seria bom se o ônibus passasse rápido; luzes verdes, letreiro amarelo. Ótimo! É ele. Fez o sinal há muitos metros de distância, mas negou o embarque. Era da mesma empresa, mas a linha diferente.
Novamente mãos no bolso e antes que pudesse utilizar a tática de ver o horário sem chamar a atenção, foi abordado por uma mulher que não havia aparecido em nossa história até então e, para ser sincero, Oscar pouco sabe de onde veio e como surgiu ali.
- Boa Noite! disse ela.
Ele, titubeando diante dos trajes vermelhos:
- ... ! Acenou positivamente com a cabeça.
Era uma mulher - como sempre se verifica em histórias que narram encontros entre homens e mulheres – extremamente atrativa, que exalava lascívia. Cabelos curtos e negramente negros; channel. Vestido vermelho marcando a silhueta mignon. Batom vermelho, da cor do vestido. Sobrancelhas que denunciavam-lhe o alto grau de sadismo. E um pescoço magro que parecia ter sido feito para acusar e indicar as saboneteiras à mostra. Com a voz aveludada, ao pé do ouvido do nosso personagem, lançou:
- Você sabe que eu não estou aqui para seduzi-lo e que não teremos um grande caso de amor. Olhou para o relógio antes da meia-noite e pouco tempo depois, de súbito, apareci. Você sabe quais são os meus objetivos e quem eu sou, portanto, facilite o trabalho e não titubeie. Não será tão doloroso se não resistir.
Oscar realmente sabia da lenda urbana que se reproduzia entre os mais jovens. Sabia também que um delírio poderia estar acontecendo e possibilitando-o vivenciar aquilo, mesmo que mentalmente, mas não conseguia lembrar-se de que tipo de produto poderia ter motivado o pensamento.
- Tudo bem, senhorita. Sei que posso estar me deixando levar pelo delirium, mas enfim, também sei que, ao que tudo indica, você é a morte e que, à 00h00minh, costuma passar para levar as pessoas que estão voltando para as suas casas. Não oferecerei resistência. Caso eu esteja sob o efeito de algum entorpecente, deixarei me levar pela onda. Caso você seja uma força sobrenatural mesmo, não vejo possibilidade de escapar. Portanto, fique tranquila. Antes de você “consumar o ato” – e fez aspas sacanas – posso fazer-lhe uma pergunta?
A Morte, surpresa, tentou demonstrar-se blasé e possibilitou, desde que não tomasse muito tempo, que o homem tirasse sua dúvida, antes de levá-lo definitivamente.
- Se me permite, gostaria de saber: Por que tanto vermelho? Você não deveria estar de preto? E a foice, cadê? Apesar de muito bonita, não se parece nem de longe com a Morte que eu idealizei.
A Morte responde com uma cordialidade inicial, já que geralmente não havia muito interesse por parte das pessoas nela:
- Esta é uma imagem antiga, que por muito tempo foi associada a mim. Hoje - ainda bem - a pós-modernidade permite que cada um pense em sua morte da maneira que bem entender e sem interferências. Não há restrições para que eu seja assim ou de outro jeito, ou você é cafona ao ponto de imaginar que deus é um cara com cabelo e barba branca?
- E por que esses trajes tão sedutores? Indagou Oscar.
A cordialidade foi abandonada e a pressa para terminar o serviço impulsionaram a sua resposta:
- Você gozaria mais facilmente comigo decrépita, de túnica preta e com uma foice, ou assim, desse jeito?
Oscar:
- Desse jeito, óbvio.
Morte:
- Pois bem. Gozar é aproveitar, queria que você aproveitasse. E há a sua relação com o orgasmo, uma palavra que pode ser definida como uma “pequena morte”. Quando a mulher ou o homem o atingem, apesar de terem morrido efetivamente por alguns segundos, voltam à condição inicial de vida. A escolha destes trajes foi apenas uma ironia contigo. Vim para que você pensasse no sexo, no orgasmo. Só que você vai definitivamente, sem chance de voltar.
E soltou uma gargalhada com todo o sarcasmo já produzido no mundo.
Foi neste momento que Oscar, como naqueles milésimos de segundo que separam a morte da vida no momento orgásmico, perguntou para ela:
- Pera aí, que dia é hoje?
- 22 de outubro, ela respondeu. Já estamos no domingo.
- E que horas você acha que são agora? Perguntou ele, irônico.
- Hora de terminar o que eu vim fazer, agora ajoelhe-se que vai ser bem melhor.
O homem insistiu:
- Uma pessoa que sabe que sua morte é certa não deveria ter o direito de fazer um último pedido? No meu caso, quero fazer uma última pergunta.
No curso de formação, a Morte era ensinada a tentar se adequar às particularidades culturais de cada vítima e, percebendo que aquilo era de extrema importância para ele, decidiu relevar. Se essa fosse a última condição para que, enfim, lhe tirasse a vida, ela estava disposta:
- Pois bem, faça a pergunta.
- Que horas você acha que são agora? Indagou novamente.
Ela:
 - 00:00h e pouca, perdemos uns 15 minutos aqui. 00h15min, por quê?
Oscar:
- O meu celular marca 01h17min.
- Você alterou o horário por qual motivo? perguntou a morte duvidosa.
- Não alterei. Hoje, à 00:00h, começou o horário de verão. Na prática, tudo o que você quer fazer comigo não vale. Você nunca esteve aqui à meia-noite. Exatamente no dia de hoje, a lenda que você veio cumprir, não pode ser consumada. De 23h59min, pulamos diretamente para 01:00h da manhã. Escolheste um péssimo dia para me levar.
A morte sorriu, de forma safada. Beijou-lhe a testa e deu as costas. Depois de 10 passos, pensou o quão burra havia sido naquela noite e o quão esperto era Oscar, aquele maldito.

Em cinco minutos o seu ônibus, o último com aquele destino na noite, passou.

Um comentário:

Eliza (Biii) disse...

Argolo,

Eu ia começar dizendo "quem diria q vc escrevia bem assim", mas não teria sentido nenhum, porque eu leio suas postagens e por elas dá pra saber que você escreve bem assim, que é criativo, articulado e descolado com as palavras. É gostoso sentir essa intimidade que você tem com elas. Gostei muito do conto.