Há uma lenda
urbana contada entre os jovens, geralmente nos locais em que ainda é possível
estar até a madrugada na rua, que diz respeito ao horário em que a Morte se
apresenta para levar as pessoas. Não
poderia ser mais emblemático e clichê, se levarmos em conta uma geração
bombardeada por cultura pop: diz a história que, exatamente à 00:00h, ela
aparece e leva aqueles que estão voltando para as suas casas.
O relato a
seguir é sobre quando, neste horário específico, de alguma forma, houve a
transfiguração da certeza de todos para Oscar.
Oscar
aguardava o seu ônibus de volta para casa ansiosamente, no ponto daquela rua
deserta e mal iluminada. No trecho em que estava, contava com dois postes e uma
lâmpada em cada um, que ajudavam a diminuir o medo por estar ali, sabendo das
probabilidades de ser abordado por um estranho que, provavelmente, não seria
nada generoso em suas colocações. Entretanto, não havia jeito. Caminhar para
outro lugar poderia ser arriscado demais. Além disso, contava com o agravante
de ser sábado, um dia em que os meios de transporte, naquele horário, diminuem
suas frotas e circulação. A melhor das opções era aguardar e contar com a ajuda
do acaso para que o seu carro passasse rápido.
Colocou a mão
por cima do bolso, titubeou em tirar o celular de dentro, para não chamar a
atenção. Optou por olhar rapidamente, fazendo com que a luz da tela o
possibilitasse enxergar, mesmo com o aparelho debaixo do tecido. Queria saber
das horas. 23h58min mostrava o relógio digital. A apreensão tomava conta agora.
De alguma forma, mesmo que ignorando de forma racional este dado, a meia-noite
lhe causava um grande desconforto, principalmente por causa da quantidade de
filmes que lhe vinham à mente. Pensou que seria bom se o ônibus passasse
rápido; luzes verdes, letreiro amarelo. Ótimo! É ele. Fez o sinal há muitos
metros de distância, mas negou o embarque. Era da mesma empresa, mas a linha
diferente.
Novamente mãos
no bolso e antes que pudesse utilizar a tática de ver o horário sem chamar a
atenção, foi abordado por uma mulher que não havia aparecido em nossa história
até então e, para ser sincero, Oscar pouco sabe de onde veio e como surgiu ali.
- Boa Noite!
disse ela.
Ele,
titubeando diante dos trajes vermelhos:
- ... ! Acenou
positivamente com a cabeça.
Era uma mulher
- como sempre se verifica em histórias que narram encontros entre homens e
mulheres – extremamente atrativa, que exalava lascívia. Cabelos curtos e
negramente negros; channel. Vestido
vermelho marcando a silhueta mignon. Batom
vermelho, da cor do vestido. Sobrancelhas que denunciavam-lhe o alto grau de
sadismo. E um pescoço magro que parecia ter sido feito para acusar e indicar as
saboneteiras à mostra. Com a voz aveludada, ao pé do ouvido do nosso
personagem, lançou:
- Você sabe
que eu não estou aqui para seduzi-lo e que não teremos um grande caso de amor.
Olhou para o relógio antes da meia-noite e pouco tempo depois, de súbito,
apareci. Você sabe quais são os meus objetivos e quem eu sou, portanto,
facilite o trabalho e não titubeie. Não será tão doloroso se não resistir.
Oscar
realmente sabia da lenda urbana que se reproduzia entre os mais jovens. Sabia
também que um delírio poderia estar acontecendo e possibilitando-o vivenciar
aquilo, mesmo que mentalmente, mas não conseguia lembrar-se de que tipo de
produto poderia ter motivado o pensamento.
- Tudo bem,
senhorita. Sei que posso estar me deixando levar pelo delirium, mas enfim, também sei que, ao que tudo indica, você é a
morte e que, à 00h00minh, costuma passar para levar as pessoas que estão
voltando para as suas casas. Não oferecerei resistência. Caso eu esteja sob o
efeito de algum entorpecente, deixarei me levar pela onda. Caso você seja uma
força sobrenatural mesmo, não vejo possibilidade de escapar. Portanto, fique
tranquila. Antes de você “consumar o ato” – e fez aspas sacanas – posso
fazer-lhe uma pergunta?
A Morte,
surpresa, tentou demonstrar-se blasé
e possibilitou, desde que não tomasse muito tempo, que o homem tirasse sua
dúvida, antes de levá-lo definitivamente.
- Se me
permite, gostaria de saber: Por que tanto vermelho? Você não deveria estar de
preto? E a foice, cadê? Apesar de muito bonita, não se parece nem de longe com
a Morte que eu idealizei.
A Morte
responde com uma cordialidade inicial, já que geralmente não havia muito
interesse por parte das pessoas nela:
- Esta é uma
imagem antiga, que por muito tempo foi associada a mim. Hoje - ainda bem - a
pós-modernidade permite que cada um pense em sua morte da maneira que bem
entender e sem interferências. Não há restrições para que eu seja assim ou de
outro jeito, ou você é cafona ao ponto de imaginar que deus é um cara com
cabelo e barba branca?
- E por que
esses trajes tão sedutores? Indagou Oscar.
A cordialidade
foi abandonada e a pressa para terminar o serviço impulsionaram a sua resposta:
- Você gozaria
mais facilmente comigo decrépita, de túnica preta e com uma foice, ou assim,
desse jeito?
Oscar:
- Desse jeito,
óbvio.
Morte:
- Pois bem.
Gozar é aproveitar, queria que você aproveitasse. E há a sua relação com o orgasmo,
uma palavra que pode ser definida como uma “pequena morte”. Quando a mulher ou
o homem o atingem, apesar de terem morrido efetivamente por alguns segundos, voltam
à condição inicial de vida. A escolha destes trajes foi apenas uma ironia
contigo. Vim para que você pensasse no sexo, no orgasmo. Só que você vai
definitivamente, sem chance de voltar.
E soltou uma
gargalhada com todo o sarcasmo já produzido no mundo.
Foi neste
momento que Oscar, como naqueles milésimos de segundo que separam a morte da
vida no momento orgásmico, perguntou para ela:
- Pera aí, que
dia é hoje?
- 22 de
outubro, ela respondeu. Já estamos no domingo.
- E que horas
você acha que são agora? Perguntou ele, irônico.
- Hora de
terminar o que eu vim fazer, agora ajoelhe-se que vai ser bem melhor.
O homem
insistiu:
- Uma pessoa
que sabe que sua morte é certa não deveria ter o direito de fazer um último
pedido? No meu caso, quero fazer uma última pergunta.
No curso de
formação, a Morte era ensinada a tentar se adequar às particularidades
culturais de cada vítima e, percebendo que aquilo era de extrema importância
para ele, decidiu relevar. Se essa fosse a última condição para que, enfim, lhe
tirasse a vida, ela estava disposta:
- Pois bem,
faça a pergunta.
- Que horas
você acha que são agora? Indagou novamente.
Ela:
- 00:00h e pouca, perdemos uns 15 minutos
aqui. 00h15min, por quê?
Oscar:
- O meu
celular marca 01h17min.
- Você alterou
o horário por qual motivo? perguntou a morte duvidosa.
- Não alterei.
Hoje, à 00:00h, começou o horário de verão. Na prática, tudo o que você quer
fazer comigo não vale. Você nunca esteve aqui à meia-noite. Exatamente no dia
de hoje, a lenda que você veio cumprir, não pode ser consumada. De 23h59min,
pulamos diretamente para 01:00h da manhã. Escolheste um péssimo dia para me
levar.
A morte
sorriu, de forma safada. Beijou-lhe a testa e deu as costas. Depois de 10
passos, pensou o quão burra havia sido naquela noite e o quão esperto era
Oscar, aquele maldito.
Um comentário:
Argolo,
Eu ia começar dizendo "quem diria q vc escrevia bem assim", mas não teria sentido nenhum, porque eu leio suas postagens e por elas dá pra saber que você escreve bem assim, que é criativo, articulado e descolado com as palavras. É gostoso sentir essa intimidade que você tem com elas. Gostei muito do conto.
Postar um comentário